segunda-feira, 5 de março de 2012

Lembranças da minha vida

Hoje estou um pouco mais gray do que pink. A vida às vezes é assim, principalmente quando tudo vai bem, quando estamos numa "maré" de sorte, em que parece que tudo vai dar certo, estamos super confiantes, os dias passam rapidamente, o trabalho alegra a alma, enfim... Mas depois parece que muitas coisas ruins acontecem todas de uma vez. Já lá diz o ditado português: "Uma desgraça nunca vem só". Fica feio dizer "desgraça" no Brasil, porque remete ao "coisa ruim", mas o nome significa o mesmo aqui ou em Portugal: coisa triste, problema, situação muito difícil. 


Fiquei sem a minha avó paterna este Sábado, dia 03. Estava com 90 anos e era a mãe do meu pai. Lembro-me bem dela e principalmente de sua risada. Estes dias, sem razão nenhuma, lembrei-me da risada dela. Era estridente, aguda, exagerada, sincera e quente.


 Ela era uma mulher extraordinária. Casou com o meu avô por amor, o que na época não era muito usado. Eram primos, distantes mas ainda assim primos. Isso era comum. O meu avô era um homem rude, muito bruto e infiel. A infidelidade era comum na época, os casais se casavam para poder tirar as moças de casa, que só faziam os pais gastar dinheiro. E os filhos vinham porque eram mais uma fonte de renda. Quantas vezes ouvi histórias de todos os meus avós sobre a infância árdua nos campos, a pobreza extrema, a falta de luxo e a responsabilidade cruel e prematura que eles sofreram.


 O meu avô paterno era órfão. Todos morriam de pena do pobre José Maria, que perdeu a mão ainda menino e cujo pai parece que sumiu. Já não lembro se morreu ainda jovem. Parece que o meu pai me contou que o meu avô era filho bastardo. Seja como for, as pessoas tinham muita pena dele, um menino loirinho de olhos verdes. Era um bom menino e parece que havia um ricaço na aldeia que o acolheu. Cresceu bonito, alto, garboso. Era um mulherengo.


 Se apaixonou por minha avó, porque ela era morena, meio índia, meio marroquina. Pelo menos era assim que parecia, porque na região dos meus avós, haviam morado os árabes, os mouros que invadiram a Península Ibérica (Portugal e Espanha) e lá se fixaram por muitos e muitos anos. Daí a cor escura dos portugueses do sul e dos espanhóis. 


A minha avó era lindíssima. Por qualquer motivo, ela se casou com o meu avô. Sei que ela o amava, pois vi muitas fotos dela na época em que ele a cortejava, onde ela deixou lindas dedicatórias. Ele a chamava de Tina e ela o chamava de Zé Maria. (Clementina era o nome dela).


Casaram nem sei em que ano, talvez em 1942 ou 43. Tiveram dois filhos, o meu pai e a minha tia. Pelo menos a minha avó teve dois filhos, o meu avô provavelmente um pouco mais, pois foi infiel a vida toda. Às vezes chegou a ser violento com a minha avó, ou assim parece.


 Em determinada altura, os meus avós moraram em Angola (antiga colônia portuguesa) e por lá o meu avô se "amancebou" com uma mulher da cidade. Era visível para todos quantos passassem, pois ele não fazia qualquer questão de esconder. Passeava com ela de carro para cima e para baixo como se nada fosse. É claro que não se agarrava aos beijos, até porque não se usava naquela época, mas as pessoas não eram estúpidas, era óbvio que eram amantes. Um ano e tanto depois, começaram a aparecer com um menino de colo loiro e de olhos claros. Minha avó sempre desconfiou que era um filho bastardo. Se era ou não nunca ninguém soube, só se soube que ele saiu com ela durante muito tempo. 


Os anos passaram e na década de 70 os meus avós voltaram a Portugal, onde se fixaram na aldeiazinha onde foram criados. construíram uma casinha e lá ficaram. O meu avô em jovem era mecânico e "chauffer", que naquela época era muito chique. Havia um médico numa cidade vizinha que era muito amigo do meu avô, gostava muito dele e só deixava o meu avô dirigir seu carro. Fizeram amizade e quando o bom doutor foi para Angola, pediu que meu avô fosse também. Assim foram a minha avó e seus dois filhos. É claro que nunca ganhou bem, mas havia um certo status ser o chauffer do senhor doutor. 


De volta a Portugal, eles viviam da agricultura, de uma pensão medíocre e da terra. Passei quase todos os fins de semana da minha infância na casa deles, que ficava a uns 20 km da minha. Íamos lá aos Sábados à tarde. O meu avô comigo era muito doce, muito meigo. Sempre me lembrei dele como um homem amigo. Para o meu pai era diferente, quando cresci ele me contou a "peça" que meu avô era. Mas eu gostava do meu avô. Ele era um homem muito lindo, muito alto, de cabelo prateado impecavelmente penteado e de olhos verdes. Tinha um sorriso lindíssimo e uma voz forte. Brincava comigo, me levava a conhecer todos os vizinhos, me mostrava todas as árvores que tinha no pomar, me dizia o nome de todas as plantas. Era alguém de quem sempre gostei. Quando eu tinha 12 anos ele morreu. Fiquei triste, mas a vida continuou.  A minha avó estava sozinha pela primeira vez,depois de 50 e tantos anos. Ela reagiu muito bem, mas percebemos que envelheceu rapidamente, ficou mais vulnerável, o mal de Parkinson apareceu, assim como outras "mazelas". 


Os anos passaram e em meados dos anos 2000, a minha tia a levou para morar com ela em outra cidade. Já estava claro que a minha avó precisava de assistência, além de companhia. A casa foi posta à venda (mas ainda está á espera de resolver pendências burocráticas) e ela viveu os últimos anos de sua vida com a filha, os netos e muitos bisnetos. Morreu feliz, e acho que assim viveu. Nunca a ouvi reclamar, só a vi chorar uma vez, porque discutiu com a cunhada. Era muito amiga de todos os netos e sempre se lembrava de todos.


 Sempre que vinha visitar, trazia um pão-de-ló que ela mesma fazia (e que nunca aprendeu a medir, toda vida fez "a olho") e que era uma delícia. O bolo mais simples do mundo, mas nunca comi bolo tão bom quanto o dela. E sempre que comi outros pães-de-ló, nenhum nunca teve o mesmo gosto que o dela. Era incrível como o cheiro da casa dela, da cozinha dela, estava sempre presente em cada coisa que ela cozinhava para nós.


 Cozinhava muito bem, a comida era muitíssimo bem temperada e ela sempre fazia questão de dizer que não tinha feito com medidas, era tudo "a olho" como ela dizia. Seguia-se então a deliciosa gargalhada estridente, como se ela dissesse que o importante da comida estava lá, o amor e a consideração que ela tinha depositado nela, pois havia feito especialmente para nós. Nunca se sentiu inferior a ninguém por ter nascido no campo, por não ter estudado. Era muito feliz por ser uma dona de casa, mãe, avó, amiga. Era uma mulher realmente extraordinária. 


Como minha tia me disse ontem ao telefone, a minha avó nos deu muito, a todos nós. Muitas vezes, curiosamente, sonho com a casa dela, com o caminho de terra que conheço como a palma da minha mão, com o cheiro de roupa lavada e com a imagem dela, pequenina e de cabelo prateado, na porta de casa esperando a gente ou acenando quando íamos embora. Vou ter saudades dela.Espero ser tão boa para os meus netos e filhos como ela foi para nós. 

Um comentário:

  1. Isso mesmo mana, tens de a lembrar sempre com um sorriso na cara. Com certeza a saudade ira estar sempre mas as boas lembranças irão aliviar a saudade. Sei que és uma mulher forte e vais superar tudo. Te amo!

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