segunda-feira, 12 de março de 2012

La musique et l'amour

Ela era uma artista, virtuosa, genial, perfeccionista. Teria os seus 60 e tantos anos, embora nunca o houvesse revelado a ninguém. Tinha os cabelos prateados, longos, sempre presos num perfeito coq. Tinha os olhos castanhos dourados e as mãos grandes e finas. Cheirava a malvas e alfazema e tinha um sorriso áspero mas cativante. A voz não era particularmente marcante, um tanto ou quanto esganiçada por vezes. Não era nada de glamouroso, mas se percebia ao olhar para ela que havia sido uma mulher imponente. Era muito alta e magra. 


Sabia-se muito pouco de sua vida pessoal. Havia sido aluna do Colégio Francês, onde se destacou como a melhor aluna. Sabia falar fluentemente 6 línguas: francês, inglês, italiano, espanhol, russo e alemão. Era uma aluna exemplar, acostumada aos requintes da alta sociedade paulistana, onde perambulava pelos bailes beneficentes dados por seus pais, os conservadores condes de Canabrava. 


Sua maior paixão era a música. Prodigiosa desde tenra idade, amava com feroz paixão o piano. Tocava melhor que Mozart, queria ser uma artista. Tinha que ser uma artista! Mas os pais caducos e entediantes cedo deceparam as esperanças de Theresa Teixeira de Canabrava, a estranha filha.
 Filha única, Thereza cansara-se de sua vida fútil e de seus pais retrógrados com seus valores obsoletos. Foi então que decidiu anunciar, em seu 18º aniversário, que seguiria a carreira de pianista. Mas que diabo! Era aluna de Madame de Bouvarie, uma velha senhora que lhe ensinara alguns acordes ao piano, mas pianista? Que afronta! Os velhos condes, claro, recusaram. Ameaçaram até deserdar a pobre moça, que não teve outra opção senão sair de casa. Assim o fez, indo morar na casa de Tia Magda, uma bondosa viúva, amante das artes e dos prazeres da vida. 


Em casa de Tia Magda, Theresa aprendeu a cantar, a receber os convidados da velha titia e principalmente desenvolveu sua bela arte. A tia, rica e sozinha, fazia-lhe os gostos, comprando-lhe seu primeiro piano de cauda. Um lindíssimo e legítimo Bechstein, que pertencera ao sobrinho de Beethoven. 


Theresa era feliz em casa de Tia Magda, mas estava com 30 anos e era solteira. A tia estava com os pés para a cova e a moça não podia ficar sozinha, até porque não sobreviveria como aluna de piano, teria que mostrar seu talento ao mundo. 


Um belo dia de Outono a Tia Magda se foi. A chorosa Theresa decidiu que estava na hora de casar. Assim foi à procura de pretendentes. Suas pretensões não eram grandes: queria um homem rico com amor às artes.   Assim descobriu, em uma festa beneficente de uma prima, Pedro Afonso Cunha e Spencer, um riquíssimo empresário do ramo petrolífero, solteiro, desajeitado, quarentão e muito culto. Gostava de comer bem, beber melhor, e de música. Theresa achou assim seu patrono. Com poucos meses, estavam casados. 


Passaram-se os anos e eles não tiveram filhos. Nunca foi essa a pretensão de Theresa, e muito menos de Pedro Spencer. A senhora Spencer era agora uma respeitada artista e professora de piano. Seu marido havia lhe oferecido, por ocasião de seu 50º aniversário, dois pianos de cauda lindíssimos, um para cada salão da imensa casa. Assim, Theresa era agora, aos 60 e alguns anos, a orgulhosa proprietária de 3 belíssimos exemplares do que de melhor se fez em instrumentação clássica. 


Passava os dias tocando, ensinando, amando cada tecla de seu piano, cada ressonância entrando na sua alma e no seu corpo, como se uma carícia a percorresse. Chorava sempre que tocava uma ária de Verdi, ou uma das sinfonias de Beethoven. Compôs muitas músicas, também. Era prolífica e incrivelmente talentosa. 


Foi então que Theresa descobriu aquele que ela amaria tanto quanto seu piano. O seu melhor aluno era um jovem garboso, másculo. Chamava-se Eduardo Cortês e era filho de família modesta. Os pais pagavam-lhe as aulas de piano com o esforço mais sobre-humano possível, mas sabiam que Eduardo amava cada momento que passava ao piano. Ele estudava Belas-Artes com uma bolsa integral e era um aluno superdotado. Estudava muito, se dedicava mais ainda e acreditava um dia ser o melhor pianista do Brasil e quiçá, do mundo. 


Era alto, de pele clara e cabelo preto. Tinha os olhos castanhos da cor da nogueira e o rosto simétrico, de uma beleza grega. Era alto, musculoso, e de sorriso fácil. Sua voz era suave, mas confiante e olhava Theresa como nenhum outro homem havia feito. Cheirava a colônia e a juventude e Theresa secretamente o desejava. Eduardo a desejava de igual modo, mas a respeitava e admirava demasiado para sequer pensar em tal ousadia. 


Certa vez, estava Theresa ao piano tocando "Gymnopédie nº1", de Satie, quando Eduardo entrou pela enorme porta de carvalho do gigantesco salão e se pôs a ouvir. Era a visão mais bela que já havia visto, suas mãos maduras e femininas abraçavam o piano com a paixão que ele sentia arder dentro do peito. Seu corpo dançava ao som da música e Eduardo a desejava mais e mais. Seria amor,paixão? Ou apenas respeito e admiração? Que dúvida cruel!
 Eduardo sabia que nenhuma mulher no mundo jamais havia despertado nele sensações tão fortes. Era inebriante o cheiro de alfazema saindo do corpo de Theresa, que agora deixara cair seu belo coq e deixara descobrir um cabelo longo e liso. Eduardo não podia mais conter seu desejo e correu para a porta, desnorteado. Theresa parou abruptamente de tocar e foi até ele.


"- Eduardo? O que aconteceu? Porque foge?"
"- Porque me tortura, Senhora Spencer?? Sabe que a amo, que a desejo e não a posso ter!"
Theresa corou. Sentiu dentro de seu ser uma alegria imensa, transbordante, que só seu piano lhe proporcionara. E pela primeira vez, se sentiu mulher.
 Ali estavam seus dois amores, o seu piano tão querido e o homem jovem e virtuoso que a amava. O que fazer?
 Afinal, era uma mulher casada. Seu marido, Pedro Spencer, não partilhava com ela seu amor pela música. Não estava em casa muito frequentemente e quase nunca perguntava de sua música.
 Mas Eduardo, ah, Eduardo! Ele a desejava, pois sabia do amor que nutria pela música. Ele a amava por tudo que ela lhe ensinara. Eles se amavam porque sim. O amor tem razões que a própria razão desconhece. E por vezes só a música o consegue decifrar.
 Foi então que Eduardo, levado por um ímpeto animal, segurou Theresa firmemente na cintura e a levou perto de seus lábios. Ela estremeceu, quase desfalecendo, num arrepio delicioso de prazer e entrega. Ele, já despojado de vergonha e preconceito, disse com voz doce e quente: 
"Theresa, on va faire de l'amour!"
"Oui, mon chère Eduardo!"- disse Theresa, numa voz doce e estremecida por uma lágrima que rolou por seu rosto, "- Mais on va changer de piano!"

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